Pra Trupe Da Gaveta

Horta I

Minhas mãos partiram para a preparação de um canto em minha horta: depositar um punhado de momentos para não perdê-los na fila seletiva da minha memória. Com cuidado enterrei-o na minha coleção pessoal de lembranças. Rodará anos. Irei desenterrar e arremessar a conjugação relembrar aos significados contidos naqueles objetos, (re)descobrindo com novos olhares.

Quem eu sou? Não sou. Quem está sendo? Estou sendo.

Posso admitir que eu seja assim assado, mas não posso negar o fato que minha vida é tecida de movimentos. Não somos mulheres e homens concluídos em características definitivas. Somos mulheres e homens inacabados, abertos ao novo que nasce em cada instante do tempo, em cada andança que percorremos. Este novo molda outros tecidos em nosso corpo e adentra na nossa alma construindo novos jeitos de ser e de experimentar a vida. E também de modificar nosso olhar diante dos vestígios que guardamos na horta da memória e em caixas de papelão. Coloco determinados valores sobre minhas lembranças do passado de acordo com o que me move no presente.

Na época em que enterrei tal objeto/momento na horta, o despejei com um punhado de valores que me constituía até então - incluindo as motivações que me empurraram a preparar a terra e colocá-lo ali. Rodou tempos e estradas. Quando desenterrei tal objeto/momento que há anos havia enterrado a fim de não perdê-lo, arremessei a conjugação relembrar aos significados contidos nele. Posso até ter recordado os motivos e valores de quando o guardei, mas a perspectiva que coloquei sobre ele não era mais a mesma, pois eu não era mais a mesma - meu corpo não havia pedido uma pausa no tempo para a sua conservação. Estava modificada: tecidos trazidos pelo vento perpassaram e costuraram de novos retalhos meus pés e mãos. Agora fitava o objeto/momento com o que possuía, com o que se movia dentro de mim; atribuía significados com os valores acumulados, modificados, restaurados ao longo das andanças e que hoje moldavam o meu estar sendo.

Esta perspectiva da vida através do pano de fundo da tecedura que costura novidade em nossos corpos foi possível quando minhas pupilas perceberam a presença da minha cobertinha com novas cores. A cobertinha é a minha companheira desde os dois anos de idade. Ela, com estampas de meninos e meninas brincando com balões e uma bruxa num grande balão de gás voando entre as linhas do tecido, iniciou a sua caminhada de mãos dadas com o meu sono. Companheira como não existe outra igual, partilhávamos as mesmas camas, sofás e chãos mesmo quando abandonávamos o nosso quarto e partíamos para outras casas, cidades e estados. Com o passar destas noites, a cobertinha – como qualquer pé de andança – sofria desgastes, solicitando novos retalhos para re-construir o seu corpo. Assim, entre estampas de flores, botões e doces, eu escolhia cuidadosamente novos pedaços e minha mãe costurava-os como remendos de cada ponto rasgado.

Há um tempo atrás olhava a minha cobertinha como uma companheira feita de retalhos de tecidos e uma companhia quentinha, fofa e confortável para entrar na noite sentido-se protegida por ela: agarrava-a com muita força já que meu preparo de sono era feito de um punhado de medo ao apagar das luzes.



Hoje ela é uma colcha deslizada por diversas cores que formam os seus retalhos e construída de uma boniteza encantadora: tecida da história do tecido original com as histórias de cada pedaço de tecido que encontrou no caminho. Histórias estas que se confundem com o movimento da minha vida nos últimos cinco anos. Histórias essas percebidas quando deparei que somos inacabados e moldados de constantes movimentos, atribuindo significados que carregamos no presente aos objetos e momentos consumados no passado. É encantador essa perspectiva da vida por meio da tecedura, pois quando reviramos a terra da horta da nossa memória re-descobrimos a nossa vida, encontrando cantos de significados que antes, quando enterrados, não havíamos percebido.

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