Fragmentos de um diário de mochila – recolhidos na estrada de janeiro de 2009

Anti-apresentação

O corpo suado, curioso e dormente se encontra dentro de um ônibus e este está deslizando sobre a textura seca das estradas de Tocantins, uma paisagem feita de árvores retorcidas, de terra avermelhada e da mesma laranja celeste que provocou desmaios em meus pés e mãos. A poeira penetra na janela e chega até as narinas. É o cheiro exalado das terras desprezadas pela densidade da água.

Roda ônibus, roda estrada em meio aos buracos...

Os dedos estão numa constante luta contra a movimentação do ônibus. Todo o esforço é para produzir uma letra legível e saborosa de degustar. Restam apenas três longos dias para o desfecho de um cotidiano do tamanho de uma poltrona: acordo nela, durmo nela, escrevo nela, leio nela, espreguiço nela, bebo e como nela... Só mesmo as palavras de transição, aquelas que alugam o papel para registrar seu poço de memória, para colocar no esquecimento essa rotina e se encantar com as paisagens que andam pelas janelas.

Papeluchos e canetas, eis que após uma bucólica introdução, seguimos para outro percurso extenso: o diário de mochila, um relato da viagem nas duas capitais tupiniquins. Só peço um pouco de cuidado! Ele contém uma porção de formigas, mosquitos e insetos exóticos entre suas páginas, além de temperaturas elevadas, paisagens carregadas de novidade e transtornos alimentares e respiratórios. Uma garrafinha de dois litros de água mineral, um protetor solar, um eficiente repelente, um saquinho de sal e interiores aberto ao mosaico de cores são entidades suficientes para aqueles e aquelas que queiram encarar quilômetros de palavras recolhidas nos cantos baianos e paraenses.

Rua Benvinda, boa viagem!

Sorrir e cantar como Bahia, aquela de todas as cores.
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Molhar o corpo na Bahia era deslizar pelas músicas dos Novos Baianos. Ah, mar é mar, correndo tranquilo pela terra como o som! Mar com pintura verde, areia branquinha e um Astro-rei da cor que eu gosto - laranja. Estender o corpo sobre aquelas águas, admirar o reflexo do sol com as pálpebras fechadas e se perder naquela imensidão.

Com ventiladores voando sobre o caderno-ceú. Brisa.
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Eis que um dos cartões-postais da capital baiana, o Pelourinho, se configurava diante dos olhos.

O início das andanças por suas pedras redondas foi em clássicas escadarias, as da Igreja do Santíssimo Sacramento. Instantes. Pagador de Promessas. Movimentos. A grande cruz de madeira carregada pelo Zé do Burro, a grande cruz carregando Zé do Burro... Imagens sucessivas rodavam pelas pupilas.

Dando continuidade pelo calçamento, dando continuidade à rotação de imagens, rodavam agora os sons, a década de 60, os conselhos de largar a jovem guarda para ser mais feliz, a tropicália, os velhos & novos baianos, a musa com juba de leão, a musa de Irará, a luta contra a lata, o parque industrial... Um grande e colorido largo surgia. A estética da Tropicália. Um mosaico de cores. O Largo do Pelourinho!

As casas históricas caminhavam pelas ruas estreitas e, pintadas de cores vibrantes, pareciam estar sobrepostas uma as outras, dando forma a um grande mosaico a céu aberto. Era o cartão-postal das cores e da sobreposição de figuras!

Pelô era o encontro dos ciscos de inquietação. As ladeiras e as igrejas ainda respingavam o sangue derramado. A crueldade corria pelo chão: escravos eram amarrados nas colunas de pedras e torturados, muitas vezes até a morte, por senhores sanguinolentos e desumanos. E é neste mesmo cenário que a pobreza, a violência e a prostituição se faziam presentes: recordavam a memória histórica brasileira, uma memória gritante que não pede para ser calada, pelo contrário, insiste em ser ouvida.

“O mundo não é, o mundo está sendo. Outro mundo não é possível, outro mundo está sendo possível. “
Paulo Freire, em algum canto do FSM 2009

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O coração da Pacha Mama, a Amazônia, acolheu os lutadores e as lutadoras de sonhos comuns com suas lágrimas de alegria: uma intensa chuva jorrou sobre as nossas cabeças, deixando-nos molhados de sorrisos.

A Marcha de Abertura tornou a Avenida Governador Barata numa grande janela sobre a diversidade. Milhares de pessoas, por meio de faixas, roupas, bandeiras e demais espaços que a imaginação é capaz de criar, estampavam o modo de ser e de viver de seu movimento social, partido político, pastoral social, tribo indígena e demais grupos. As vozes eram entoadas nos gritos de repúdio à realidade perversa e desumana que produz miséria e violência e um ser humano egoísta e alheio aos sentimentos da transformação. E ao lado desta denúncia, o anúncio de outro mundo possível era proclamado.
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A larga fila para entrar no ginásio da UEPA, cenário de um encontro latino-americano, não desanimava quem a enfrentava, pelo contrário, tornava as expectativas ainda maiores.

Na busca de uma ampla visão, degraus no interior do ginásio foram percorridos e os olhos se depararam com coloridas bandeiras empunhadas pelas mãos daqueles e daquelas que marcham noites pela América Latina para nascer manhãs de bonitezas. Vermelhas, verdes, amarelas, roxas... todas na luta pela realização do sonho da solidariedade.

Rafael Correa e Hugo Chavez desprenderam as vozes para entoar aquela canção... “Aquí se queda la clara, la entrañable transparencia, de tu querida presencia Comandante Che Guevara...”

Comentários

  1. as paisagem que corria pelas janelas, o tremer do mundo que se alinhavava ao ônibus, este completamente parado, não somente livre do tempo que logo irria corroer a ferragem que o envolvia, mas depois de tanto dormir, acordar, sentir e ressentir seu balançar, eis que o mesmo é esquecido no momento em que a porta se abre e dá margem para uma nova paisagem, uma nova cidade: a nova vivência. gostei das cores dotexto, elas foram muuitas!

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  2. Opa, opa.. então aqui há outra andante!
    Obrigada pelas palavras, as envio de volta pela beleza das observações deste teu andar. Só hoje vim ler.. e fiquei maravilhada!
    Abraço

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  3. Estreiaste um novo gênero, o poema-relato... e estou apenas triste de não estar nele pois vivenciei esses momentos também [UEPA foi minha casa naqueles dias] mas não pude escrever nenhuma memória tão bela como essa.

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