Das poeiras impertinentes

Sem a pretensão de tornar este amontoada de palavras um memorial que procura as justificativas para meus interiores carinhosos e amorosos pela história, cá despejo fragmentos da micro-história da minha vida até os 22 anos de vivências, fragmentos estes, que materializados no meu cotidiano, me perguntam se minha impertinência excessiva de guardar memórias em gavetas, estantes e guarda-roupas foi e é inerente a mim-nós. Descartado o roda-pé, friso que há tensões entre a 1ª pessoa do singular e a 1ª pessoa do plural, pois sou constituída de outra pessoa, a minha irmã gêmea, que assim como a minha pessoa, também partilha dessas mesmas interrogações.

Ofício da historiadora de desconfiar e questionar a memória, dirigindo meus olhos para minha-nossa história, talvez a cobertinha, uma colcha inacabada de retalhos, é o mito fundacional de uma identidade construída na preocupação constante da memória. Povoando-me desde os dois anos, a cobertinha foi incorporada a nossa cama de casal e com seu desgaste natural solicitava novos retalhos de tecidos para remendar sua idade. Descrevo-a como um lugar de memória: cada retalho é um pedaço de história.

Derramado sobre este papel a narrativa de origem, parto para os rascunhos. Na antiga sala de jantar, hoje tomada de livros, objetos, tintas, cadernos e tecidos, há um canto exclusivo para papéis e mais papéis usados, pronto para serem re-inventados de lápis, caneta ou tinta de impressão. São rascunhos depositados desde 2003. De um lado da folha o deserto branco, do outro, marcas. Quando me afasto de mim mesma, causa estranhamentos deparar-me com uma coleção de rascunhos.

Se os rascunhos exigiram um espaço, (todos) os cadernos, os trabalhos, os livros didáticos do ensino fundamental e médio de mim e da Paula, estão guardados para a posteridade em caixas de papelão. Algumas traças são conterrâneas constantes.

Desta preocupação patrimonial, as cartas também foram e são recorrentes. Na presença da distância, posto os correios eletrônicos ou telefone, nas suas condições da não-palavra escrita, são as cartas que registram aquilo que quer ser arremessado às pessoas de distantes quilômetros. Retirar os escritos dos envelopes amarelos e percorrê-los na ansiedade é insistir pelas memórias.  

Descrita a cobertinha, os rascunhos, os cadernos escolares, as cartas haveria fios e fios de cabelo para os recreios na biblioteca, as coleções iconográficas, os arquivos musicais e outros fragmentos. Há mais três que é oportuno contar: gatos, roupas e livros.

Inicio pelos livros. Mário Quintana diz que os livros não guardam apenas poeiras, mas as poeiras dos séculos. Quando as mãos encontram livros em sebos e os levam para a sua nova casa, a imaginação me povoa. As páginas velhas e usadas são indícios de que o livro tem memórias guardadas: pessoas muitas percorreram suas palavras, num processo de re-signifcação. Por isso, toda vez que sou presenteada ou me presenteio com livros, sejam eles novos ou usados, a caneta trata de escrever na primeira página o tempo-espaço que foi me dirigido e os interiores que perpassavam durante o ato.

Quanto às roupas, o guarda-roupa é povoado de vestimentas do século passado. Roupa também é constituída de histórias: vestir trajes usados e moldados é permitir-se a um emanharado de representações e narrativas.

E os gatos? Quais os fios condutores entre gatos e a impertinência constante de memórias? Gatos combinam com livros, são uma ode à vida erudita e artística.

Para encerrar um amontoado de palavras que narram fragmentos sobre teimosias de guardar memórias numa adega, nada mais bem vindo que o som vintage, cheirando a naftalina propositalmente da Reino Fungi.

Comentários

  1. "cada retalho é um pedaço de história."
    a vida é feita da união destes diversos retalhos!
    Bonita partilha e bjão!

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