Não se nasce mulher, torna-se mulher II
Beatriz Concha Torres
Intrínseco ao
projeto de vida que se pauta em redes de bem-quereres, sejam elas nas relações
pessoais e cotidianas ou em coletivos que sonham mundos possíveis, o amor não é
somente um fenômeno da natureza humana entre duas pessoas. Kollontai que o
diga. Nos seus escritos de 1918 e 1921, a militante do Partido Bolchevique
desfiou o amor e suas implicações sociais em provocações muitas. Para ela, o
amor é sobretudo um fator social, agregado de intencionalidades a cada etapa da
história.
A ideologia capitalista, por exemplo, tratou de atribuir ao amor o seu conteúdo individualista: o latifúndio, de cercas e ciúmes grandes. Ao amor latifundiário é destinado a propriedade privada, a posse absoluta da pessoa amada pela outra! Trata-se de instrumentalizar a pessoa ao instalar-se no seu interior. Como se ela fosse um bem aquisitivo! É um amor egocêntrico e egoísta, pois se consome no exclusivismo à pessoa amada, em detrimento da autonomia de ir e vir, de criar e gerar gentileza. É um amor violento, pois se pauta na dependência recíproca e na perpetuação de valores atribuídos historicamente às mulheres e aos homens. O corpo da mulher, sua sexualidade e seus direitos reprodutivos, estão sob o controle das rígidas instituições masculinas. Do amor latifundiário, somente é permitido um amor heterossexual! Cabe a recordação de uma pergunta da Maria Soave: Quando inventaram que sexo e dominação andam abraçados?
Este ideal de
amor capitalista é imposto aos nossos corpos diariamente. Apresenta-se nas
vitrines com promessas de felicidade plena e para todo o eterno. Mas basta
descortiná-lo que sua falsa moral escorre pelas sacolas plásticas! O isolamento
das duas pessoas do resto da coletividade e a falsa indissolubilidade abre
caminho para a existência da traição. E o ciúme de exageros evidencia o mundo
técnico, frio e desumano, que cria a solidão interna concomitantemente
com o refúgio na
apropriação da pessoa amada. Basta de individualismos extremos, de
egocentrismos transformados em cultos, de propriedades privadas no âmbito das
relações humanas! Basta de violência contra as mulheres! Basta de dominação e
de códigos morais!
Não podemos
aceitar um ideal de amor burguês que viola um dos princípios fundamentais da
sociedade socialista: o companheirismo! Kollantai abre passagem para o
amor-camaradagem: ela alarga a palavra amor, adentrando numa proposta radical,
forjada na igualdade de relações mútuas entre mulheres e homens e no
reconhecimento recíproco da autonomia de ambos, sem o sentimento de propriedade
absoluta. No amor-camaradagem há a potencialização de ramificações coletivas!
[...] se desenvolverá enormemente a tendência a manifestar o amor não
somente com beijos e abraços, mas também com uma unidade de ação e de vontade
na criação comum (p.158).
De Kollontai a
Maria Soave, as páginas úmidas, teo-poiéticas e eco-feministas de Eu,
Terra do Meio partem para o aprofundamento do amor camarada. Maria
Soave não utiliza o termo, mas a proposta da sexualidade como aquisição de poder e
de vida é tão radical quanto o amor-camaradagem, pois as raízes dos corpos – o gostoso
e coletivo gosto de viver – tornam-se centrais em nossos caminhos!
Viva Kollontai! Huifa!
Viva Kollontai! Huifa!
Pâmela Cervelin Grassi
Estava procurando a definição de amor-camaradagem segundo Kollontai e achei seu blog. Obrigado. Tenho refletido sobre uma concepção proletária de amor, se é que isso possa existir. De como nos ensinaram o amor e as limitações disso. E de como pensar o amor de maneira libertária, sem estigmatização. É um grande desafio, pois está muito internalizado por nós a concepção de familia, de posse do outro. Não se se superaremos isso, acho que sim, mas é um processo histórico. Enfim, é um excelente tema. Mais uma vez obrigado.
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